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IDH e Ciclomobilidade
No mundo todo é fácil perceber uma clara presença de bicicletas em cidades bem desenvolvidas. Não que naquelas pobres e caóticas elas não existam, mas neste cenário a bicicleta entra como uma falta de opção para quem sonha com um automóvel. O foco deste texto, entretanto, é a relação entre usuários de bicicleta por opção e a maturidade de desenvolvimento da cidade.
Por muito tempo achei que a facilidade que a cidade oferece aos ciclistas era apenas um item normal, algo que pode ser implementado da mesma forma que uma avenida, um parque ou um hospital. Que bastava um projeto, uma licitação e em menos de um ano estaria operacional. Mas não é tão simples.
O usuário da bicicleta fica exposto a uma série de fragilidades físicas e sociais. A conclusão que eu cheguei após conhecer algumas cidades é que a viabilidade da ciclomobilidade depende da eficiência simultânea de vários itens da sociedade. Seriam eles, como exemplo:
Educação superior
Uma boa forma de verificar a qualidade dos engenheiros, arquitetos, urbanistas e administradores que a as faculdades da região estão formando é prestar atenção na estrutura viária da cidade. Péssimas faculdades tendem a formar péssimos profissionais, que por sua vez, irão priorizar a infraestrutura para carros.
Com trânsito planejado para o automóvel, pedestres e ciclistas correm risco de vida ao precisar se expor em “largas avenidas de alta velocidade”. E não chega a ser uma solução, sequer para o usuário do automóvel, ao verificar uma bola de neve que se forma em direção a congestionamentos épicos.
Educação básica e primária
É a fase da vida onde se introduz a noção de respeito ao próximo. Mostrar que a civilidade deve reinar e não a lei do mais forte. O ciclista é frágil comparado há um carro e deve (conforme o código de trânsito) ter preferência sobre outros veículos. Uma educação básica ineficiente e infrutífera cria pessoas selvagens. Pessoas selvagens intimidam ciclistas utilizando o carro e também furam fila preferencial para idosos no mercado, estacionam em vagas para deficientes, discriminam outras etnias etc.
Igualdade social
Em cidades com grande desigualdade social, o meio de transporte virá símbolo de status para firmar sua classe. Nelas, praticamente só se encontra 2 tipos de usuários de bicicletas: (a) trabalhadores simples e de baixa renda e (b) esportistas com bicicletas caras. Bicicletas caras, chamativas e novas para não correr o risco de ser confundido com um “pedreiro de barra forte”, que significaria uma humilhação. Enquanto que na Suécia, Canadá, Noruega etc. até diretores de empresas podem ser vistos indo trabalhar com bicicletas simplórias.
Conscientização ambiental
Utilizar um automóvel queima 1 tonelada de ossos de dinossauros por ano. Não é pouca coisa. Ônibus não fica muito longe disso. Quem joga lixo na rua dificilmente vai se preocupar em tentar reduzir esse número ou impedir um desmatamento. São fatos relacionados. Obviamente que uma população informada sobre questões ambientais terá um percentual maior de ciclistas.
Saúde
Este é um dos campos mais onerosos para o estado. E é ainda mais caro se for constituído apenas de tratamentos depois que a doença se manifestou. Em cidade com uma estrutura de saúde eficiente e completa busca-se a prevenção. A bicicleta é um inimigo voraz da obesidade e do cigarro. Localidade com concentração de usuários de bicicleta têm índices de saúde e de expectativa de vida melhores. E vice e versa.
Segurança
Os ciclistas se deslocam relativamente de forma lenta. Não tem vidro e aço. Podem ser carregadas facilmente por uma pessoa. Tudo isso torna bicicleta/ciclista um alvo fácil para o crime. Onde há criminalidade alta, percebe-se que poucos se arriscam a utilizar a bicicleta, ainda que todos os demais itens forem favoráveis para o uso.
Existem uma infinidade de itens que poderiam ter sido citados. Aqueles citados, em geral, conseguem mostrar parâmetros que compõem o IDH, um número que expressa o quanto uma localidade é desenvolvida, justa, segura e saudável.
Não é difícil supor que esta correlação entre IDH e ciclomobilidade exista. Estime as condições de ciclomobilidade / quantidade de usuários de uma região em relação à outras; certamente o IDH será melhor naquelas com mais ciclistas (e com mais condições de se locomover). Não ignoro que existam fatores clima e relevo, mas certamente não são os principais.
Ciclofaixas
Ciclofaixas são o objetivo de todo cicloativista. Tratam-se daquelas exclusivas para o uso de ciclistas, acompanhando avenidas de grande fluxo. Com qualidade de pavimentação igual ao das faixas convencionais, tornam-se tornam realmente úteis para a mobilidade, permitindo facilmente que, dentro de centros urbanos, o tempo de locomoção seja inferior ao de automóveis e ônibus. É importante não confudir com as duvidosas e lentíssimas ciclovias de guias rebaixadas em todos os cruzamentos.
Mas enquanto elas só existem nos sonhos e nas campanhas políticas, vejamos o que a interpretação das atuais leis de trânsito reservam para os ciclistas.
Leis
O que temos na lei:
- Preferência sobre veículos automotores: na prática significa que um condutor veículo automotor, numa restrição de espaço, deve desviar do ciclista e não o oposto. Não custa lembrar que pedestres têm preferência sobre todos.
- Na ausência de ciclofaixa, acostamento ou ciclovia – não confundir com calçada asfaltada, que é exclusiva para pedestres como qualquer outra – o ciclista pode e deve conduzir na faixa, no lado direito, no sentido da via.
- Obrigatoriedade dos veículos automotores de passar no mínimo a 1,5m de distância de um ciclista – para veículos grandes é 3 metros no mínimo.
E as dimensões dos elementos citados:
- Largura da rodovia categoria zero (a mais larga): 3,5m
- Largura de um carro compacto aleatório: 1,7m
- Largura do guidão de uma MTB comum: 0,7m
Fazendo as contas, vemos que caso um ciclista ocupe seu lugar numa via (lado direito) obtemos:
0,7m (largura do guidão) + 1,5m (distância mínima que deve se manter do ciclista) + 1,7m (largura do automóvel) >3,5m
Isto nas melhores condições. Na prática os carros são mais largos, as faixas mais estreitas e temos uns 0,2m de imprecisão na posição.
Conclusão. Caso haja um ciclista numa faixa, ela é exclusiva, por lei, do ciclista. Para ultrapassá-lo, o motorista não poderá compartilhá-la a mesma faixa por causa das distâncias mínimas a serem respeitadas. Ele precisará mudar de faixa (quando houver uma segunda faixa) ou permanecer pacientemente atrás do ciclista. Não por educação. É lei.